top of page

Ministério da Justiça divulga como "criação própria" Protocolo construído por mulheres des

  • por Isabela Hornos
  • 24 de jun. de 2020
  • 5 min de leitura


O Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou no Diário Oficial dessa terça-feira (23/06/2020) a Portaria n. 340/2020, a qual supostamente “Cria o Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos Crimes de Feminicídio” [1]. Segundo a Portaria, o Protocolo possui a finalidade de subsidiar e contribuir para a padronização e uniformização dos procedimentos aplicados pelas polícias civis e pelos órgãos de perícia oficial de natureza criminal na elucidação de feminicídios. Ainda, conforme divulgado no portal de notícias do Ministério, “pela primeira vez, peritos e polícias civis estaduais e do Distrito Federal vão contar com um protocolo de padronização na investigação e perícias de crimes de feminicídio” [2], algo que não corresponde à realidade.


Inicialmente, é válido mencionar que, sob a justificativa de “assegurar a confidencialidade e a integridade do documento”, o conteúdo do Protocolo não foi disponibilizado ao público, apenas aos órgãos técnicos de investigação e perícia. A despeito de não se saber exatamente o que consta nesse documento – e sem afastar a imensa falta de transparência e razoabilidade em não torna-lo público – conforme sua própria nomenclatura, protocolo é a padronização de procedimentos a serem adotados como regulação de determinadas atuações técnicas.


Ocorre que, desde antes do feminicídio ser tipificado no Código Penal em 2015, o Brasil já possuía modelo de protocolo para investigar mortes violentas de mulheres em razão de gênero. Em 2014, o Escritório Regional para a América Central do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OACNUDH), com o apoio do Escritório Regional para as Américas e o Caribe da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), lançou no Brasil o “Modelo de protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio)” [3].


O “Modelo de Protocolo”, através do trabalho interdisciplinar e interinstitucional de muitas mulheres, deu lugar ao documento “Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios” [4], ratificado nacionalmente pelo então governo da Presidente Dilma Rousseff e lançado oficialmente no país em 08/04/2016 – isto é, há mais de 04 anos atrás [5].


À época, o Brasil foi selecionado como país-piloto para o processo de adaptação do Modelo de Protocolo e sua incorporação às normativas e legislações nacionais vigentes, culminando na criação das Diretrizes Nacionais [6]. O projeto se desenvolveu com a criação de um Grupo de Trabalho Interinstitucional composto por Delegadas de Polícia, Perita(o)s Criminais, Promotoras de Justiça, Defensoras Públicas e Juízas. A formação do grupo levou em consideração a experiência com perícia, com investigação de processos de homicídios e com a aplicação da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006). A cooperação interinstitucional também contou com a colaboração do Ministério da Justiça, por intermédio da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e da Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e do Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE), os quais apoiaram a realização de oficinas para apresentação do protocolo e para sua validação [7], evidenciando o comprometimento, a seriedade e o profissionalismo com que o documento foi produzido.


As Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres trazem “orientações e linhas de atuação para melhorar a prática do(a)s operadore(a)s de justiça, especialistas forenses ou qualquer pessoal especializado – que intervenham na cena do crime, no laboratório forense, no interrogatório de testemunhas e supostos responsáveis, na análise do caso, na formulação da acusação, ou ante os tribunais de justiça” [8], abordando desde a Investigação e Perícia, até a fase do processo e julgamento.


Por outro lado, o atual Ministro da Justiça André Mendonça classificou o atual Protocolo como “uma apuração mais profissionalizada, rápida, eficiente (...)” [2], invisibilisando todo o trabalho já realizado anteriormente.


Não pretendo, aqui, tecer uma crítica sobre a atualização e a modernização de mecanismos e políticas de combate às violências de gênero – se é que se pode classificar dessa maneira o documento sigiloso. Entretanto, o apagamento do trabalho de mulheres, o silenciamento de suas vozes através do ocultamento de suas produções científicas e profissionais, bem como a divulgação de ideias pertencentes à mulheres como criações pioneiras do atual ministro não se comunicam com o movimento pela emancipação das mulheres e com a luta pelo fim da violência de gênero. Tais práticas, na verdade, carregam em si diversas formas de violência contra mulheres, algo que a pasta se propôs a combater de maneira lamentavelmente enfadonha.


Volto a mencionar o sigilo atribuído ao Protocolo atual. É incabível que uma Política Pública para mulheres no quinto país do mundo em números de feminicídios não consiga se sustentar mediante o debate público, inclusivo e democrático. O Estado quer decidir (literalmente) sobre os nossos corpos à nossa revelia ao passo que despreza Diretrizes previamente construídas por mulheres numa perspectiva de gênero e interseccionalidade.


Não haverá proteção e garantia aos direitos das mulheres sem o devido reconhecimento de que o trabalho desenvolvido pelo documento “Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres” é precursor e basilar para qualquer Política realizada pelo Poder Público nessa direção.


Por fim, vale dizer que segundo a Portaria n. 340/2020, a adoção do Protocolo atual é facultativa.

 

Referências:


[1] Imprensa Nacional. DOU. 23.06.2020. Disponível em: < http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-340-de-22-de-junho-de-2020-262969693>. Acesso em 23 de junho de 2020.

[2] Ministério da Justiça e Segurança Pública. Notícias. MJSP cria protocolo que padroniza investigação e perícia nos crimes de feminicídio. 23.06.2020. Disponível em: <

https://www.novo.justica.gov.br/news/mjsp-cria-protocolo-que-padroniza-investigacao-e-pericia-nos-crimes-de-feminicidio?fbclid=IwAR0TMXauP4CdfJdFp1ZpkS8ptECOezhFvUdof3ka1wYvM0z2QDXkKRli4sQ>. Acesso em 23 de junho de 2020.

[3] ONU Mulheres. Modelo de protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio). 2014. Disponível em: < http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/05/protocolo_feminicidio_publicacao.pdf>. Acesso em 23 de junho de 2020.

[4] ONU Mulheres. Diretrizes nacionais feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. 2016. Disponível em: <https://www.tjms.jus.br/violenciadomestica/arquivos/publicacoes/13.Versaofinal-LivroDiretrizesNacionaisFeminicidio.pdf>. Acesso em 23 de junho de 2020.

[5] ONU Mulheres. Notícias. ONU Mulheres e governo brasileiro lançam, em 8/4, diretrizes nacionais para investigação de feminicídios. 06.04.2016. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/noticias/onu-mulheres-e-governo-brasileiro-lancam-em-84-diretrizes-nacionais-para-investigacao-de-feminicidios/>. Acesso em 23 de junho de 2020.

[6] ONU Mulheres. Diretrizes nacionais feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. 2016. Disponível em: <https://www.tjms.jus.br/violenciadomestica/arquivos/publicacoes/13.Versaofinal-LivroDiretrizesNacionaisFeminicidio.pdf>. Acesso em 23 de junho de 2020. p. 11.

[7] ONU Mulheres. Diretrizes nacionais feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. 2016. Disponível em: <https://www.tjms.jus.br/violenciadomestica/arquivos/publicacoes/13.Versaofinal-LivroDiretrizesNacionaisFeminicidio.pdf>. Acesso em 23 de junho de 2020. p. 11.

[8] ONU Mulheres. Diretrizes nacionais feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. 2016. Disponível em: <https://www.tjms.jus.br/violenciadomestica/arquivos/publicacoes/13.Versaofinal-LivroDiretrizesNacionaisFeminicidio.pdf>. Acesso em 23 de junho de 2020. p. 11.


Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square

Newsletter

  • Branca Ícone Instagram
  • Branca Ícone LinkedIn

© 2017. Todos os direitos reservados para Isabela Hornos.

bottom of page