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A representação da mulher na mídia como estímulo à violência de gênero

  • por Isabela Hornos
  • 5 de out. de 2017
  • 6 min de leitura

Foto: Imagens e sons por Isabela Hornos

Estamos vivendo o maior movimento feminista global já conhecido. Isso se dá pelo avanço das novas tecnologias de informação e comunicação, as quais possibilitaram que deixássemos de ser meros consumidores das informações e passássemos, também, a participar mais ativamente da produção dos conteúdos midiáticos.

Porém, este movimento feminista atingiu tamanha dimensão justamente pelo avanço nas redes de informação, e não pela ausência de mulheres predecessoras das lutas por igualdades. Simone de Beauvoir, em meados do século XX já trazia questionamentos sobre o por quê a figura da mulher simboliza o desprezível, o pejorativo e uma afronta ao “macho” [1]. Mas hoje, quase um século depois, ainda recorremos a estes mesmos questionamentos ao sermos vítimas de violência de gênero diariamente. Por que, então, não evoluímos social e culturalmente tanto quanto a tecnologia e os meios de comunicação?

De acordo com Patrícia Gonçalves Saldanha, que conceitua Mídia no livro “Dicionário Feminino da Infâmia: Acolhimento e Diagnóstico de Mulheres em Situação de Violência”, a mídia se apoia na cultura e investe no artifício do convencimento, emitindo sinais que intencionalmente serão absorvidos e que podem influir na própria formação identitária dos sujeitos. A mídia também alimenta o cotidiano com os valores convenientes para a manutenção da lógica mercadológica da qual é porta-voz. [2]

Dessa forma, como os meios de comunicação são ferramentas de construção de sentido[3], também embasam seus conteúdos em valores que desejam ver entranhados na sociedade e por ela reproduzidos.


Se olharmos para um passado não tão distante, veremos que até bem pouco tempo atrás mulheres eram constantemente bombardeadas com informações e imposições culturais que as colocavam em padrões de comportamentos definidos e esperados em razão do gênero: desde propagandas que posicionam a mulher em papéis de “belas, recatadas e do lar” (como dos produtos para tirar gordura do fogão), até propagandas que as vendiam como objetos a serem desfrutados junto com os produtos, tais como cervejas, carros, cigarros e perfumes. Muitas dessas campanhas se veem até os dias atuais.

“ESQUECI O NÃO EM CASA” e “TOPO ANTES DE SABER A PERGUNTA” foram campanha do Carnaval de 2015 de uma das maiores cervejarias do mundo, reproduzindo exatamente aquilo que intencionavam perpetuar, ainda que às custas de uma estatística de mais de 47 mil estupros registrados no Brasil naquele mesmo ano [4].

Crescemos em uma sociedade que ensina e romantiza a história de um príncipe que beija uma mulher sem consentimento, naturalizando que mulheres são frágeis e vulneráveis e que dependem dos homens para sua salvação – ainda que estes homens as toquem enquanto elas dormem.

Essa mesma sociedade assistiu um show de horrores no Big Brother Brasil 2017, televisionado em horário nobre, onde um homem agrediu física, verbal e psicologicamente sua parceira (quase 20 anos mais nova).

Na mesma semana, a novela das nove estreou com o personagem principal atirando em sua esposa no dia de seu casamento. Quantos de nós percebemos esta violência e quantos de nós achamos que a personagem fez por merecer uma tentativa de homicídio? Nessa mesma novela observamos que, na construção de personagens, as poucas personagens negras da novela não possuem um papel próprio, mas sim a de coadjuvantes de personagens brancos [5].

Enquanto isso, cerca de 14 mulheres morrem por dia no Brasil vítimas de feminicídio. Dessas, mais de 50,3% são agredidas por familiares próximos (principalmente por parceiros e ex-parceiros) [6], sendo que a taxa de feminicídio de mulheres negras é 65,3% maior do que feminicídio de mulheres branca [7], evidenciando que as crenças em nós incutidas são refletidas em violências cotidianas. Dessa forma, não nos basta abordarmos a figura da mulher versus mídia e violência de gênero na perspectiva do feminismo convencional, isto é, essencialmente pautado na percepção da mulher branca, sob pena de reproduzirmos exatamente aquilo que este excerto se propõe a questionar. Se as informações produzem movimento, devemos trabalhar com elas, assumindo que a ausência de movimento nos privilegia com poder e dominação.

Todas as informações veiculadas pela mídia são intencionalmente trabalhadas dentro de padrões estéticos, culturais, sociais e raciais, permeados de opressões históricas. E não seria diferente: quem detém o poder da comunicação narra a história como melhor lhe convém e como quer que seja assimilada.

Invocando quem melhor aborda a luta contra a misoginia, a hegemonia branca e a dominação dos meios de comunicação, Bell Hooks faz a intersecção entre raça e gênero, aborda o apagamento violento da mulher negra pela mídia e, ainda, como o a figura da mulher negra é invocada com degradação nas raras oportunidades em que é invocada. Nessa conjuntura, também evidencia como o feminismo branco ignora a luta da mulher negra (e, portanto, alimenta a segregação racial e a violência de gênero) [8].

Bell Hooks nos ensina, ainda, que o conceito de “Mulher” como nos é dado hoje suprime a diferença entre as mulheres em contextos sócio-históricos específicos [9]. Dentre as violências difundidas pelos meios de comunicação está a ideia de que a mulher branca é o único padrão aceitável do feminino, reforçando a supremacia branca.

Nesse inegável contexto, o feminismo branco não se comunica com as lutas que a mulher negra enfrenta, contribuindo para continuidade da hegemonia branca nos meios de comunicação (e disso se beneficiando).

Ora, se sabemos que a mídia apaga, silencia e deprecia a mulher negra, quando falamos de violência de gênero por uma ótica exclusivamente branca, o que temos visto é tão somente a representação das dores brancas.

Vimos veiculados discursos e imagens depreciativas da mulher branca, a naturalização da violência contra a mulher branca, a representação pejorativa e nociva da imagem da mulher branca porque a mulher branca está nesses espaços. Assim, quando a mulher branca se sente invadida, controlada e violada, também tem sido capaz de se comunicar com o jugo da mulher negra e enxergar seu privilégio branco dentro da própria luta de gênero?

Portanto, falar sobre luta das mulheres frente às violências de gênero impostas e naturalizadas pela mídia é, também, e principalmente, ter consciência das políticas de raça e racismo dentro da abordagem de gênero, bem como dar espaço às construções e à representação da mulher negra [10].

Quando nos deparamos com os dados de que apenas 8% dos Inquéritos Policiais de violência de gênero são concluídos no Brasil, com a estimativa de que anualmente 107 mil mulheres necessitaram de atendimento médico em decorrência de violência doméstica (agressão de intensidade que demanda intervenção médica), de que apenas 7,4% dos agressores das mulheres que necessitaram de intervenção médica do SUS estão sendo criminalmente processados e de que isso não significa que serão condenados [11], precisamos avaliar que na ponta dessa escala de violências está a mulher negra e que toda a luta efusiva da mulher branca contra a opressão está dando muito errado quando observamos que a mortalidade de mulheres não negras teve uma redução de 7,4% entre 2005 e 2015, enquanto a de mulheres negras aumentou 22% no mesmo período [12].

Mulheres brancas estão alimentando o ciclo segregacional. Ou a mulher branca se situa de seus privilégios e do quanto produz opressão, ou continuará sendo instrumento de propagação de um sentido perverso, violento e racista que sustenta o patriarcado contra qual se propõe a lutar. Derradeiramente, mas não menos importante, como mencionado no início desse texto, com o avanço das redes de informações, mídias sociais etc., deixamos de ser meros consumidores e passamos a produzir conteúdos de comunicação. Portanto, podemos e devemos nos apropriar desses mesmos meios de comunicação para desconstruir papeis que nos são impostos e resistirmos às imposições midiáticas, fazendo da nossa comunicação espaço de inclusão, respeito, representação e luta.

 

Referências:

[1] BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 2. ed. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. p. 35.

[2] SALDANHA, Patricia Gonçalves. Mídias. In: FLEURY-TEIXEIRA, Elizabeth e Stela N. Meneghel. Dicionário Feminino da Infâmia: Acolhimento e Diagnóstico de Mulheres em Situação de Violência. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015. p. 222.

[3] SALDANHA, Patricia Gonçalves. Mídias. In: FLEURY-TEIXEIRA, Elizabeth e Stela N. Meneghel. Dicionário Feminino da Infâmia: Acolhimento e Diagnóstico de Mulheres em Situação de Violência. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2015. p. 222.

[4] CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Daniel Santa Cruz; FERREIRA, Helder. Revista brasileira de segurança pública. São Paulo v. 11. n. 1, 24-48, Fev/Mar 2017. Estupro no Brasil: vítimas, autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúde entre 2011 e 2014. Disponível em: < http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/estupro-no-brasil-vitimas-autores-fatores-situacionais-e-evolucao-das-notificacoes-no-sistema-de-saude-entre-2011-e-2014/> Acesso em: 04 out. 2017 apud FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2015. p. 36 Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2015.retificado_.pdf>.

[5] Disponível em: <http://gshow.globo.com/novelas/a-forca-do-querer/personagem/marilda/> Acesso em: 05 out. 2017.

[6] WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. 1. Ed. Brasília, 2015. Disponível em: < http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf> Acessado: 10 abr. 2017.

[7] CERQUEIRA, Daniel; DE LIMA, Renato Sergio; BUENO, Samira; VALENCIA, Luis Iván; HANASHIRO, Olaya; MACHADO, Pedro Henrique G.; LIMA, Adriana dos Santos. IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Rio de Janeiro. Jun. 2017. Atlas da Violência 2017. p. 36 a 42. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf> Acesso em: 05 out. 2017.

[8] O olhar opositivo – a espectadora negra, por Bell Hooks. Disponível em: <https://foradequadro.com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/> Acessado: 03 out. 2017.

[9] O olhar opositivo – a espectadora negra, por Bell Hooks. Disponível em: <https://foradequadro.com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/> Acessado: 03 out. 2017.

[10] O olhar opositivo – a espectadora negra, por Bell Hooks. Disponível em: <https://foradequadro.com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/> Acessado: 03 out. 2017.

[11] WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. 1. Ed. Brasília, 2015. Disponível em: < http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf> Acessado: 10 abr. 2017.

[12] CERQUEIRA, Daniel; DE LIMA, Renato Sergio; BUENO, Samira; VALENCIA, Luis Iván; HANASHIRO, Olaya; MACHADO, Pedro Henrique G.; LIMA, Adriana dos Santos. IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Rio de Janeiro. Jun. 2017. Atlas da Violência 2017. p. 36 a 42. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf> Acesso em: 05 out. 2017.

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